DIÁRIO DE VIAGEM DO JORNALISTA NUNO FERREIRA (EX-EXPRESSO, EX-PÚBLICO) QUE ATRAVESSOU PORTUGAL A PÉ ENTRE FEVEREIRO DE 2008 E NOVEMBRO DE 2010. O BLOG INCLUI TODAS AS CRÓNICAS PUBLICADAS NA REVISTA "ÚNICA" EM 2008, BEM COMO AS QUE SÃO PUBLICADAS SEMANALMENTE NO SITE CAFÉ PORTUGAL. (Travel diaries of Nuno Ferreira, a portuguese journalist who crossed Portugal on foot from February 2008 to November 2010. contact: nunoferreira62@gmail.com ou nunocountry@gmail.com

24/09/10

HERÓIS DO PATRIMÓNIO ABANDONADO

Nos solitários e pouco conviviais dias da semana, quando atravesso localidades desérticas do interior, posso apreciar a fachada, a escadaria e a envolvente de muitas capelas e igrejas mas dificilmente posso entrar e apreciar o interior. O património histórico religioso está entregue a uma máquina burocrática estatal que classifica mas não tem dinheiro para manter e proteger convenientemente. Sem verba para funcionários e o advento do roubo indiscriminado de arte sacra, as chaves dos locais de culto e de um espólio turístico-religioso riquíssimo fica a maioria das vezes na mão de populares, devotos e carolas.
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Em Maio de 2009, atravessei o “Vale Encantado” de Tarouca. Num vale verdejante, entalado entre serras, com mosteiros, igrejas e uma proximidade estratégica com Lamego e o Douro, o concelho tem tudo para ser visitado.Curiosamente, o património que pude visitar com maior facilidade foram as Caves da Murganheira. Tirei a mochila, pedi para visitar e de um momento para o outro encontravam-me entre paredes de granito azul e garrafas, muitas garrafas de espumante.
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Igrejas e Mosteiros, esses, é toda uma outra história. Em São João de Tarouca, o mosteiro estava entregue a António Vieira Caetano, 72 anos, que durante anos trabalhou em lojas de vestuário lisboetas como a alfaiataria Rosa & Teixeira. Um dia, António regressou à terra natal e decidiu tratar do mosteiro. “Foi um chamamento divino”, contou-me, “quando cheguei em 1977 o Mosteiro tinha as portas abertas, estava sem telhado, tinha os azulejos descolados e esculturas em terracota desfeitas”.
António Caetano, além de cicerone do Mosteiro de São João de Tarouca, era um contador de histórias: “Uma vez um ex-presidente da Junta de Freguesia apontou-me uma pistola porque queria construir habitação junto ao mosteiro e eu opus-me. Já faleceu, Deus o tenha em descanso”.
Para ajudar a preservar o monumento nacional, António Vieira Caetano chegou a colocar jovens de ocupação dos tempos livres a cortar paus para escorar as talhas. Durante o governo de António Guterres, o mosteiro sofreu grandes obras de restauração alegadamente devido aos apelos insistentes de António. “O Guterres veio cá , eu estava ali ao fundo e ele perguntou: Onde está o senhor Caetano, esse herói, que eu quero dar-lhe um abraço”.
Enquanto atravessava a região, deparava-me com histórias semelhantes. Em Salzedas, por exemplo, era o padre António Teixeira quem lutava pela preservação da Igreja Matriz, das Ruínas da Abadia Velha e apelava à conservação do bairro judeu da localidade. “A judiaria de Salzedas é a nossa jóia da coroa e está a caír aos bocados. É uma peça única. Temos aqui um bairro judaico intacto, diferente de Belmonte. Aqui o bairro funcionava em gueto, as casas comunicavam uma com as outras. Pode-se circular por 40 habitações em circuito fechado, sem vir à rua”, explicou-me.
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Em Salzedas, encontrei o padre António Teixeira, entre a celebração de um casamento, a necessidade de guiar uma excursão à Abadia e a venda de artesanato, muito do qual tem a ver com as abadias dos Monges de Cister.
Antes de Salzeda e antes da Murganheira...passara em Ucanha para procurar a Dona Rosa, durante muitos anos a anfitriã da célebre Torre da povoação e hoje quem guarda a Igreja Matriz. Ucanha, o rio Varosa bordejado por salgueiros e amieiros, os campos de milho, olivais e vinhas tendo como pano de fundo a Serra de Santa Helena, é uma jóia preservada pelo projecto “Aldeias Vinhateiras do Douro”.
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Como muito do nosso património, a Torre de Ucanha esteve durante muito tempo entregue ao vento. “Estava abandonada e eu botei-lhe a mão”, contou-me Rosa de Jesus, 74 anos Foi ela que
durante mais de 20 anos cuidou da Torre Fortificada e da Igreja Matriz de Ucanha. “Tratei daquilo, fiz lá um pequeno museu com coisinhas agrícolas, fazia as limpezas e explicava as pessoas a História da Torre. Eu não sei ler mas fui aprendendo com os turistas. Para o fim parecia um papagaio, sei tudo de cor”. A Torre passou a ser a razão de viver da mãe de 11 filhos. “Era como a se a Torre fosse minha. Recebia louvores dos turistas no livro de visitas…”
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Em 2001, Rosa de Jesus foi substituída pelo turismo local. “Foi como uma facada nas costas. Eu fazia aquilo por orgulho, prazer, por paixão”. Sem entender o afastamento, Dona Rosa adoeceu. “Estive em depressão e em tratamento. Então, eu estava acostumada a estar a fazer o comer e apagar o lume para ir atender os turistas…”
Sem a “sua” Torre, Rosa de Jesus continuou a tomar conta da Igreja. Não me deixou ir embora de Ucanha sem visitar a Igreja Matriz. Estava fechada, sim, mas ela tinha a chave. Num ápice, ultrapassámos a sobriedade granítica do exterior. Não estava preparado para a riqueza brutal da talha dourada dos retábulos, para a beleza enorme dos caixotões pintados do tecto. Apercebi-me da presença de um casal de turistas ingleses no exterior e chamei-os. Traziam um livro que lhes servia de guia. Expliquei-lhes que por sorte a Igreja Matriz estava aberta e que fecharia mal a Dona Rosa regressasse a casa. Entraram. A mulher soltou um : “Oh meu Deus!” Ficaram extasiados. Queriam saber coisas, muitas coisas, em inglês. Dona Rosa respondia em inglês e eu tentava traduzir para português. Por momentos fui quase guia turístico. Um guia do nosso património semi-abandonado.
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