DIÁRIO DE VIAGEM DO JORNALISTA NUNO FERREIRA (EX-EXPRESSO, EX-PÚBLICO) QUE ATRAVESSOU PORTUGAL A PÉ ENTRE FEVEREIRO DE 2008 E NOVEMBRO DE 2010. O BLOG INCLUI TODAS AS CRÓNICAS PUBLICADAS NA REVISTA "ÚNICA" EM 2008, BEM COMO AS QUE SÃO PUBLICADAS SEMANALMENTE NO SITE CAFÉ PORTUGAL. (Travel diaries of Nuno Ferreira, a portuguese journalist who crossed Portugal on foot from February 2008 to November 2010. contact: nunoferreira62@gmail.com ou nunocountry@gmail.com

26/10/10

EM ARCOS DE VALDEVEZ (CLICAR PARA LER NO SITE DE CAFÉ PORTUGAL)

Quando Lucinda Pereira, 74 anos, começou a tear monelhas, ainda na freguesia de Vilar do Monte, Ponte de Lima, todo o lavrador que tivesse vacas tinha de as ter. “Nesse tempo, tinha eu 14 ou 15 anos, os animais tinham todos cangas e para aliviar punha-se a monelha na cabeça da vaca. Era para não trilhar. Os mais pobres faziam-nas com um saco velho cheio de palha, os outros encomendavam-nas”.
Lucinda aprendeu a tecer essa espécie de almofada que assentava na canga dos bois com uma senhora das terras de Coura. Fez tantas e durante tanto tempo que lhe perdeu a conta. Quando as cangas perderam o uso e as monelhas levaram o mesmo caminho, Lucinda passou a fazê-las por encomenda.
De nuno fotos

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monelha

“Vendi muitas para o Canadá, para França. Agora já não tenho vista para as trabalhar e já não há material, a lã, o pano, as linhas próprias para elas, a correia”. Hoje há monelhas tecidas por Lucinda Pereira em todo o lado menos em sua casa. “Vendi-as todas”. Encontrei Lucinda e o marido entretidos no trabalho do campo em Grijó, Rio Frio, uma freguesia serrana a uns quilómetros largos do vale onde repousa Arcos de Valdevez. Grijó tornou-se conhecida pela broa de milho premiada em Itália e que atraíu ali jornais e televisões. “Aqui o ar é bom, sim senhor mas a vida do campo é escrava”, explica Lucinda, que continua a viver da lavoura, do milho, das batatas, das ovelhas, do feijão.
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Dias antes ainda andava eu pelas margens do Rio Minho, agradecido pelo Outubro ameno e soalheiro. A praça fronteira à Torre do Relógio, em Caminha, enchia-se de espanhóis nas esplanadas, o coloridos das embarcações diluindo nas águas de um azul suave de aguarela. Até Vila Nova de Cerveira, absorvi aquele Minho fronteiriço e mais buliçoso. Foi quando peguei a EN 302 em direcção a Paredes de Coura, que encontrei muito outonal e posta em sossego umas valentes horas mais tarde. No dia seguinte, descendo para as bandas de Arcos de Valdevez é que percebi verdadeiramente que já estava num outro minho, serrano, as aldeias espaçando-se em declives.
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No topo do que é hoje conhecido como a Paisagem Protegida do Corno do Bico, percebi o quanto valeu a pena percorrer a 303 para chegar a São Mamede e avistar o vale do Rio Vez lá em baixo. A estrada, essa, continuou a contorcer-se entre as últimas parras das vinhas já amarelecidas e avermelhadas.
De Arcos de Valdevez à bucólica Ponte da Barca é um pulo de não mais de cinco quilómetros, o que separa o Vez do Lima. Em Arcos (nos Arcos, como diz toda a gente) antes de me fazer ao caminho, cruzei respeitosamente a entrada da Igreja da Lapa e fui bater à porta da famosa Tasca do Delfim, um santuário pagão de concertinas do mundo inteiro. “Toquei muito por todo o lado, aqui em Portugal, nos Estados Unidos, Brasil, Canadá, Venezuela. Só a França fui 220 vezes”, explica sorridente Delfim Amorim “e em todo o lado onde ía comprava mais uma concertina com o dinheiro que ganhava”.
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Delfim, que cantou e tocou durante três anos no afamado e turístico Restaurante Três Pontes em Viana do Castelo- “tinha de usar fato e gravata”- ainda é do tempo em que o tocador de concertina era visto como “parolo”: “Porque o indivíduo que aparecia com a concertina ao ombro era o gajo a quem toda a gente pagava uns copos para ouvir a música. Chamavam-lhe parolo”. Hoje, há uma legião de “parolos” de todas as idades e proveniências a fazer da concertina um ex-libris do Alto Minho.
“Deu-se a explosão total. Quando eu era novo alguma vez uma mulher tocava concertina? Hoje, vai-se a um encontro de concertinas, é mulheres, crianças, é incrível. Toda a gente quer aprender e cada vez mais porque a concertina é alegre, levezinha e faz-se gato sapato dela”, explica Delfim.
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O tocador largou a estrada e deixa que venham até si, ao santuário. “Larguei por razões de saúde. Sabe que cantar ao desafio faz mal à saúde”, diz, sorrindo. “Ninguém canta ao desafio sem beber. Este ano fui às Feiras Novas (festas de Ponte de Lima) porque fazia 40 anos que lá vou e em 1970 recebi lá o primeiro prémio de cantigas ao desafio. Mas estive lá sexta-feira, recebi um ramo de flores, cantei e toquei, bebi uns copitos e ala dali para fora. Já me aperta a idade!”
Longe do rebuliço das romarias, Delfim Amorim está nas suas sete quintas entre as centenas de fotos de amigos e tocadores que fez pelo mundo e entre a sua colecção de concertinas.
O futuro da família no reino das concertinas ( um filho e uma filha também cantam e tocam) parece definitivamente assegurado. “O meu filho, esse é a melhor coisa que existe”, afirma com um brilhosinho nos olhos. O filho é o Delfim Júnior, líder da banda Império Show. “Há oito dias, no Canadá, meteu 2.700 pessoas num salão onde nem o Quim Barreiros nem o Augusto Canário meteram tanta gente”.

4 comentários:

saloia disse...

Nuno,
Adoro esta sua viagem. Fico com inveja (mas da boa!). Obrigada por esta história.

Mary Pereira

Manuel Luis disse...

A viagem, a musica tudo é perfeito!
Boas caminhadas.
Abraço

NUNO FERREIRA disse...

Muito obrigado

luisalves1969 disse...

Nuno adorei seu blog!
Abraços de Brasília, capital do Brasil...

 
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